AOS AMIGOS…
Estou já na minha nova casa, em Camposampiero. A distância vai dando a possibilidade de acalmar os ânimos e eu vou voltando ao normal, ajudado pela tranqüilidade deste lugar, de algum modo bucólico; a vida de compromissos comunitários (oração, refeição, encontro com os frades e alguns poucos leigos); o tempo para oração pessoal, direção e confissão; e um bom tempo para leitura (algo que sempre gostei e que não tinha tempo nos últimos anos).
Desde quando tomei a decisão sair da Ordem, eu vivi uma série de demonstrações de amizade. A avaliação sincera que faço hoje, depois da tempestade, é que: por mais que ficou claro a falta de amor de alguns, ficou claro também como eu tenho amigos sinceros. É fácil ficarmos falando mal uns dos outros, ficarmos com leva-e-traz que não expressam uma total verdade sobre as outras pessoas envolvidas, mas talvez nos esquecemos facilmente de agradecer. Por isto eu resolvi colocar por escrito a minha gratidão a algumas pessoas que sei que estiveram comigo todo o tempo, outras que sofreram sem meu conhecimento – rezaram, outras que se aproximaram no final do percurso. Não é possível escrever o nome de todos agora, mas uma atitude eu tomei em relação a meu futuro: serei grato e não me constrangerei em manifestar esta minha gratidão para com estas pessoas, pois elas também não se constrangeram, em momento algum em estar comigo – e tenho consciência que eu não fui um amigo fácil durante este tempo.
Em outros tempos, até para manter uma postura pública de não ferir suscetibilidades, eu me acostumei a agradecer sem mencionar nomes. Só que, na verdade, estes agradecimentos não existem, pois quando se agradece se fala de pessoas concretas. Ainda reconhecendo que muitas pessoas me ajudaram de muitas maneiras, tenho no meu coração algumas pessoas que, conforme eu tenho dito, saem desta história, juntamente comigo, como amigos que levarei até a vida eterna, pois de um modo ou de outro foram presença de Deus na minha vida. Como a palavra de Deus diz: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro!” (Eclo 6, 14), devo dizer que cheguei aos 39 anos deixando de lado a ilusão de homem público (que pensa que tem muitos amigos!!!) e ao mesmo tempo com a consciência que descobri que tenho alguns “tesouros valiosos” na minha vida e estes nada, nem ninguém vão me os tirar.
Permitam-me citar alguns nomes e dizer o porquê os cito:
Começo a minha lista pelos amigos que já os reconhecia de muito tempo: Valcir – que foi um grande sofredor com toda a minha história e foi sempre o advogado próximo. Tive a sorte de ter um irmão que se tornou amigo; Luciana – amiga de longa data e que sofreu enormemente juntamente comigo, ficando ao meu lado em cada decisão.
Frei Lindor Tofful: costumo brincar que ele é argentino, mas é bom. Mas devo dizer que muitos frades argentinos foram meu porto seguro, como esquecer a presença amiga e orante de Zoilo, Carlos Trovarelli, Jorge Fernandez e outros. Contudo a relação com Lindor foi muito mais profunda, sincera, confidencial. No meu sofrimento em Roma, foi com este frade que eu abri meu coração. Ele sofreu comigo, me corrigiu, me apoiou. Foi ao Brasil duas vezes para me visitar e fez de tudo para evitar minha saída.
Conheci Frei Lindor quando eu era postulante e ele secretário da FALC (Federação dos Conventuais da América Latina), depois nos encontramos algumas vezes – sobretudo quando eu era Ministro Provincial e ele trabalhava com os formadores da FALC, quando eu era Conselheiro Geral ele foi eleito Secretário Geral para Formação. É um homem muito capaz e dou graças a Deus porque ele estava em Roma durante o momento que a minha história me levou a renúncia. Eu sempre dei passos errados sem falar com ele antes, por isto renunciei e por isto pedi para sair.
Neste processo ele se demonstrou como um irmão sem qualquer medida ou restrição. Foi para mim não o irmão mais velho da parábola, mas o pai misericordioso. Quando lhe disse que não iria sair, ele que foi sempre muito respeitoso com minha decisão, praticamente me trouxe roupa nova, anel e sandálias para os pés.
Posso dizer que se é raro ter um amigo, e quando este amigo é frade e argentino, se torna ainda mais raro. Uma brincadeira!!!
Márcia e Carlos Reis: este casal apareceu na minha vida de um modo curioso – eles conheciam Frei Jorge que era conselheiro da equipe 55, mesma equipe do casal. Eu fui apresentado para eles quando estava de férias com Frei Jorge em Alagoas, era o ano 2000. Estávamos todos com roupa de banho e até hoje a Márcia zomba do modo como me conheceu. Nunca pensei que anos depois seríamos tão próximos, a começar que eu fui o sacerdote da equipe 55 por algum tempo.
Quando eu renunciei a minha função de Conselheiro Geral da Ordem, este casal foi procurado pelo querido Frei Faustino que pedia-lhes para cuidar de mim. E eles cumpriram fielmente.
Nas suas diferentes reações, eles manifestaram amor e atenção para comigo. O refrão que sempre escutei foi: independentemente da sua opção, nós somos seus amigos. E a amizade se manifestou e se manteve quando eu era conselheiro, quando resolvi sair e quando desisti de sair. Busquei fazer deles os primeiros a saberem das grandes notícias de minha vida e eles me inseriram na casa deles não como hóspede, mas como um membro da família, onde eu pude gozar da tranqüilidade que se tem em um lar.
Eles sabem o quanto me foi difícil dizer a eles e aos meus amados irmãos (João Carlos, Larissa, Guiga e Mariana) um adeus, um até logo. Foi uma das poucas vezes que tive que conter choro (não porque não continha, mas porque não chorava). Na ocasião eu fui “salvo” por um telefonema!!!
Além de terem me oferecido um lar, eles se sacrificaram economicamente para me darem um trabalho, que foi a THP Solutions, onde eles investiram para que eu tivesse uma empresa minha e do seu filho, e, no momento que resolvi ficar na Ordem, Márcia assumiu-a para levar o projeto adiante.
Inaldo da Silva e Paulo: Quando decidi sair, eu comecei a fugir de todo mundo. Era difícil lidar com a sensação de fracasso e com uma história sem explicação clara nem mesmo para mim. Para todos que me ligavam eu sempre fugia e se enviavam e-mail eu não respondia. Inaldo e Paulo, eu os conheci há alguns anos, ao Inaldo eu conheci primeiro, era o ano 1988. Desde quando voltei ao Brasil, Inaldo me bombardeava de sms e chamadas ao celular, eu trocava de número e ele encontrava o novo. Um dia eu pedi para uma amiga atender e dizer para ele que o celular estava com ela, eu estava fora de Brasília, não queria contato com ninguém e ninguém sabia precisar o meu paradeiro. Ao final ele falou: “Nós estamos partindo para Brasília para encontrar Frei João, não importa o que ele vai fazer da sua vida, somos seus amigos. Ficaremos em Brasília o tempo necessário para encontrá-lo e se a senhora é amiga dele, vai ajudar-nos nesta tarefa!!!”. Ao final eu falei: com estes não funcionou o meu argumento, tenho um problema.
Para resolver o problema eu liguei pela primeira vez para Frei Janusz, eu não o buscava desde quando cheguei no Brasil. Frei Janusz, com o seu jeito pacífico, me aconselhou a recebê-los, pois somos amigos, e a falar com Dom Frei João Wilk. Na verdade eu fiquei até aborrecido com Frei Janusz, mas depois pensei: “Afinal, se eu liguei, não era para escutar o que eu penso. Não me custa nada escutar o que ele disse!” No mesmo dia liguei para Inaldo e falei, vocês venceram, vou estar aqui com vocês, no hotel, durante toda a sua estadia em Brasília. Terminei a ligação para Inaldo, liguei para Frei João Wilk, fui visitá-lo, escutei e ele me pediu para procurar Dom Frei Fernando. Voltei a Brasília, estive com Inaldo e Paulo, eles foram os grandes responsáveis para meu coração ir se tornando novamente carne. Quando eles se foram, eu parti para Piracicaba e no encontro com Frei Fernando eu chegava à seguinte conclusão: “Frei Fernando, eu nunca questionei a minha vocação, estou saindo por mágoa. Estou sofrendo e sei, agora, que muita gente está sofrendo comigo. Irei colocar um fim neste sofrimento, telefonar para o Ministro Geral e voltar para a Ordem, para onde ele quiser!” E assim o fiz...
Inaldo e Paulo, e neles a Comunidade Doce Mãe de Deus, tiveram a ousadia de não respeitar tanto a posição de um homem em crise. Foram os amigos fiéis que se tornaram “poderosa proteção” para mim contra mim mesmo. Acredito que hoje nós somos tão respeitosos da individualidade que não percebemos que em algum momento, por ser amigo, é preciso interferir na vida do outro para dizer: “amigo, não se destrua!” Eles não me pediram para ficar na Ordem nem no sacerdócio, mas me fizeram refletir sobre o erro que estava cometendo.
Eis uma amizade curiosa: tinha tudo para não dar certo. Eles são de um grupo com o qual nunca tive maior aproximação (RCC), estavam geograficamente distantes, eram mais próximos de outros frades da Ordem e não tivemos encontros em quantidade, mas valeu a qualidade destes encontros. Frei Janusz naquele dia por telefone dizia: “João, conversa com eles, são seus amigos, e quem sabe a graça de Deus virá de onde não se espera!” E veio mesmo, foram os leigos que me fizeram começar o caminho da “volta do filho pródigo”.
Tudo isto me faz chegar a algumas conclusões:
1. Estou, diante de Deus, ligado a estas pessoas, por um vínculo mais forte que a morte: o amor. Por elas eu rezo cada dia, a elas eu quero bem, e delas não admito que se fale mal, porque se houver algo errado nelas, eu mesmo vou dizer.
2. Devemos saber o momento justo, o motivo e o modo de “desrespeitar” a individualidade, pois em nome dela nós podemos ver muitas pessoas deixarem até um caminho vocacional (sacerdócio, matrimônio, etc) sem uma razão suficientemente grande.
3. O consagrado (sacerdote, religioso) não deve ter medo dos leigos. Percebi que a nossa vocação é até mais valorizada pelos leigos que por nós mesmos. Acredito que a fidelidade à nossa vocação e aos compromissos que assumimos, na atualidade da Igreja e do mundo, passa pela proximidade com leigos que nos ajudem a viver a nossa opção e a desmistificar a vocação laical, reconhecendo o seus valor e as duas dificuldades. É bom para o padre estar em um grupo laical (OFS, ENS, ECC, RCC, Focolarinos, etc) e cair do pedestal para ser um irmão, que ajuda e se deixa ajudar.
4. Reconheço hoje o dom das novas comunidades na Igreja, afinal fui salvo por uma delas. Valorizo as ordens antigas, mas ao mesmo tempo vejo que as novas comunidades, muitas delas laicais, são o sopro do Espírito na Igreja de hoje, e como tal devem ser acolhidas e ajudadas no seu processo de maturação.
Este texto nasce do coração e da “pena” de alguém que é “sobrevivente de uma grande tribulação e que quer lavar e alvejar suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap. 7, 14) e que reconhece que foi a graça da vocação sacerdotal e religiosas que lhe proporcionou o dom destes amigos. Hoje sou mais agradecido pelos amigos que tenho do que choroso pelos que pensei que tinha.
A todos os meus amigos, os mencionados e os ocultos, os lembrados e os esquecidos, os de ontem e os de hoje, os católicos e os de outros redis, os que me procuraram e os que se esconderam de modo respeitoso, a todos a minha gratidão, e estejam certos que hoje eu rezo cada dia por vocês.
E se tem outros motivos de ação de graças, um deles para mim é eu ter chegado à liberdade e maturidade de poder escrever hoje estas linhas. Espero que o que passei me ensine a ser mais livre, mais humano, ou seja, mais cristão, mais sacerdote, mais franciscano.
Um beijo no coração de cada um.
Frei João Benedito Ferreira de Araújo
quinta-feira, 28 de maio de 2009
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Frei!
ResponderExcluirEsse é o momento daquele que possui coragem, não é para os covardes!
Tenho certeza que a catarse te fez perder os "oitocentos" quilos desnecessários em tuas costas.
AMOR, PAZ E BEM!
bjs mil Socorro Sampaio